domingo, 5 de julho de 2015

Contos curtos

A QUEM INTERESSAR POSSA

Abriu a janela no exato momento em que a garrafa com a mensagem passava, levada pelo vento. Pegou-a pelo gargalo e, sem tirar a rolha, examinou-a cuidadosamente. Não tinha endereço, não tinha remetente.

Certamente, pensou, não era para ele. Então, com toda delicadeza, devolveu-a ao vento.

A PAIXÃO DA SUA VIDA

Amava a morte. Mas não era correspondido.

Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.

Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.

CONTO EM LETRAS GARRAFAIS

Todos os dias esvaziava uma garrafa, colocava dentro sua mensagem, e a entregava ao mar.

Nunca recebeu resposta.

Mas tornou-se alcoólatra.

DE CABEÇA PENSADA

Tinha 30 anos quando decidiu: a partir de hoje, nunca mais lavarei a cabeça. Passou o pente devagar nos cabelos, pela última vez molhados. E começou a construir sua maturidade.

Tinha 50, e o marido já não pedia, os filhos haviam deixado de suplicar. Asseada, limpa, perfumada, só a cabeça preservada, intacta com seus humores, seus humanos óleos. Nem jamais se deixou tentar por penteados novos ou anúncios de xampu. Preso na nuca, o cabelo crescia quase intocado, sem que nada além do volume do coque acusasse o constante brotar.

Aos 80, a velhice a deixou entregue a uma enfermeira. A qual, a bem da higiene, levou-a um dia para debaixo do chuveiro, abrindo o jato sobre a cabeça branca.

E tudo o que ela mais havia temido aconteceu.


Levada pela água, escorrendo liquefeitas ao longo dos fios para perderem-se no ralo sem que nada pudesse retê-las, lá se foram, uma a uma, as suas lembranças.

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